A baía
A baía
Pequena história
Primeira parte
A baía era grande. Tinha de se andar mais de uma hora para chegar à ponta norte, onde se abria outra, mais pequena, e assim sucessivamente, até surgirem praias rochosas. Ir e voltar, caminhando na areia branca e suave, endurecida pelo sol após a preia mar, sob o céu azul, podia tomar-nos algumas horas.
Parávamos nos baixios, com corrente mais suave, e sentávamos, sentindo o ir e vir das águas frescas do oceano. O som do mar, do bater das ondas mais para longe, e os sons da praia, abafados pela distância, envolvia-nos, tornando perfeita a tarde. E havia as pequenas pedras roladas pelas marés, polidas, de várias cores, pedaços de vidro verde, amarelo, vermelho, lapidados pelo movimento das marés; havia conchas de todos os tamanhos, búzios de muitas cores e formatos, tudo vindo de muito longe, não se sabia de onde. E algas, verdes e castanhas, despedaçadas.
Nas tardes de nortada, o frio afugentava-nos. E continuávamos em casa, estendendo a manhã entre a cama quente e a cozinha, onde havia pão fresco, estaladiço, manteiga e leite com café. O tempo passava lento e calmo. Sentados à mesa, uma mesa de madeira dourada pelo tempo, com pratos cavalinho e copos sidari, de vidro verde, tudo pousado numa toalha bordada à mão por alguma das minhas tias-avós no início do século XX, ele via as novelas e eu lia os jornais que tínhamos comprado na véspera. E riamo-nos das patetices de que nos lembrávamos, e ele chorava as férias serem tão curtas, mal haviam começado.
Muitas manhãs continuávamos enroscados numa das camas que estavam disponíveis, pouco espaçosas, quente dos nossos corpos tostados pelo sol. E rebolávamos para a esquerda, e depois para a direita. Mordíamos-nos um ao outro com carinho, ele matava-me de cócegas, dava-lhe beliscões com os dedos dos pés, o que lhe causava admiração, jurávamos ficar quietos, mas com os pés tentávamos por o outro fora da cama, após o que havia guerra total.
Os poucos amigos que tínhamos na praia estavam a trabalhar e encontrá-los-íamos à noite, no bar. Não fazíamos refeições. Íamos ao bairro dos pescadores onde havia menos de meia dúzia de restaurantes. Tínhamos escolhido um, com esplanada resguardada do vento por um vidro, que não era vidro de verdade, mas plástico, e comíamos que nem reis peixe acabado de pescar ou carne do mercado que ficava a cem metros. Havia sempre pudim, ou bolo, e café, um café delicioso tirado numa máquina velha. Tudo ali era velho, aliás, desde o pavimento gasto por anos e anos, quando aquilo era uma simples taverna e loja com livro de dívidas e pagamentos. A nova geração tinha montado a esplanada e de taverna passara a restaurante, com cozinheira dos casamentos do vilarejo e sobremesas francesas dos filhos emigrantes.
Quando a noite ficava cerrada, íamos para o bar onde conversávamos sobre a vida dos que ainda não tinham chegado, e a vida dos donos do restaurante e da sua família e a vida de cada um. E bebíamos. Ele bebia muito, mas eu achava natural que bebesse. Ria-se todo o caminho para casa e adormecia logo que se deitava na cama estreita. Encostava-me a ele e adormecia também, sem preocupações nem ambições. No fundo, era feliz, embora só descobrisse que aquilo era felicidade muitas décadas depois, quando tudo se desabou pelos excessos que cometi.
Segunda parte
Agora que o tempo varreu aquela época da minha vida, e a minha vida parou no tempo, por motivos que não interessam aqui explicar, entendo que, aos poucos, o aborrecimento começou a instalar-se naquelas férias. Quando ele voltou ao trabalho, retomei os meus estudos. Descobri que havia uma senhora que ensinava datilografia e aprendi a escrever à máquina. Treinei para o exame, mas não precisava dele e não o fiz. Comprei uma máquina, que me custou um ordenado, pois ganhava muito pouco. Ainda a tenho. Nela trabalhei muitas horas e escrevi artigos sobre a minha especialidade. E, quando as minhas férias terminaram, fui trabalhar para longe, não porque quisesse, mas porque assim era na época, concorria-se a praticamente todo o país e aceitava-se qualquer cidade.
Quando o pai dele morreu, não tive tempo para ele e aconteceu aquilo que se diz "a vida separou-nos". Éramos novos, nada tinha um significado especial, tudo era transitório. Ninguém novo sabe verdadeiramente que o tempo passa, que a vida fica mais complicada e que tanto se complica que nos pode levar para o fundo de um vórtice ao mesmo tempo que tudo fazemos para melhorarmos e tornarmo-nos adultos responsáveis. Para, no mínimo, nos mantermos à tona.
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