pequena história
Ao entrar na casa percebi que havia uma grande agitação. A filha mais velha abriu-me a porta e entrei para o salão onde o pai estava em grande desconforto. Analisei o meu velho amigo com todo o cuidado e achei que a sua perturbação era um grande estado de stress - sabia que vivia um momento particularmente incómodo e não hesitei em prescrever um ansiolítico que o ajudaria com toda a certeza. Não me demorei mais. O genro saiu comigo para aviar a receita, mas foi no seu carro e separámo-nos.
Talvez meia hora depois fui chamado outra vez à mesma casa. A filha disse-me ao telefone que tinha que voltar, que o pai estava muito pior, que não só a sua agitação aumentara como se sentia muito mal disposto e com dores terríveis. Rapidamente lá cheguei. Ouviam-se muitas vozes a falar ao mesmo tempo, num timbre de aflição. Ao entrar no salão, o meu amigo estava de pé, em frente da lareira e, no momento em que olhou para mim, com um olhar muito admirado, caiu no chão, direito, hirto, mantendo naqueles grandes olhos azuis aquela profunda admiração, como se tivesse sabido ou visto qualquer coisa de extrema singularidade. A filha mais nova, que ainda não tinha visto, entrou com aquele seu ar de rainha de um reino perdido, olhou para o pai e disse simplesmente: "O papá está morto".
Havia que chamar a ambulância, havia que chamar o genro que tinha ido à farmácia, havia que consolar a viúva, entravam pessoas e saiam, e sentei-me no sofá, um pouco abalado. Havia agora silêncio, quando a ambulância levou o corpo e, sinceramente não sabia bem o que fazer, pois estava numa casa de amigos, embora na condição de médico. Ouvi umas passadas suaves a descer a escada que ficava mesmo por cima do sofá. E olhei para a esquerda, onde as escadas terminavam, a meio do corredor que dava para a sala de jantar e para o hall de entrada. Uma figura caminhava em direção à sala de jantar. Era um homem jovem. Tinha a figura do morto, quando era novo, mas de uma singural beleza, e como se não tivesse sobre ele o peso dos anos. Não sei o que tinha vestido pois não ia despido, mas não lhe vi ou não me lembro de ter visto a roupa. Mas era um corpo, sem dúvida nenhuma. A sua passada, serena, revelava que ia em missão. E ia muito determinado. Curiosamente, não sendo transparente, via-o em todos os ângulos. Entrou na sala, mas percebeu que se tinha enganado e voltou para trás, entrou no hall, onde eu já o não podia ver, e senti-o sair.
O que acabo de narrar deve ter acontecido em poucos segundos pois logo ouvi outros passos, esses bem audíveis, do genro do defunto. Vendo-me, perguntou-me quem tinha descido as escadas. Estava com o rosto assustado e muito branco. Respondi-lhe que, realmente, tinha ouvido alguém a descer, mas que não tinha visto quem. E aproveitei para me despedir.
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