O meu Quénia
Primeira parte
Após 7 horas entre voos e aeroportos, e gastos seis mil euros, cheguei ao aeroporto de Nairóbi. Estou em África.
Vejo muitas tonalidades de negro e não entendo o que dizem as pessoas, mesmo após centenas de horas a ouvi-las em videos e blogues. Sei que há meia centena de dialetos no Kénia mas, entre os quenianos, apenas se entendem se forem de aldeias vizinhas. É muito estranho, mesmo para um europeu, porque na Europa entendemos pelo sotaque de que país são as pessoas e estudamos, pelo menos, 3 línguas; aqui, estando no mesmo país, como estrangeiro, não entendo nenhum dialeto.
Mantenho para mim mesmo que, mesmo assim, ouvir os sons das conversas das pessoas que passam, é, aqui, exatamente igual ao que acontece no meu país - pela entoação vejo que estou no meio do povo mais simples do Quénia (os ricos não se misturam). As frases que ouço e se perdem à medida que as pessoas passam, são curtas, os modos são bruscos e, a ideia geral é de que as pessoas não são amistosas e não gostam umas das outras.
Diferente é o tom do meu anfitrião e das duas técnicas que o acompanham. Também já os tinha ouvido muitas vezes: ele, com a sua pose pastoral e elas, de voz baixa e suave, terna e simpática.
O homem ficou contente por me ver chegar e imagino, sorrindo interiormente, que está eufórico porque a espera acabou e vamos começar o que aqui me trouxe. Ele é todo virado para a ação. E mesmo quando se detém para observar, a sua mente fervilha, erraticamente, da grandiloquência à exaltação religiosa (adaptada às suas ideias pessoais), do pragmatismo à crítica política virulenta.
O meu QuéniaEstamos num país que existe há cerca de 60 anos, independente da velha Inglaterra colonial, mas ainda muito anglicano, ainda que também muito islâmico, tribal, mas com sentimentos de forte nacionalismo, aberto ao exterior pelos mais diversos motivos, sonhando muito com dólares americanos, sem menosprezar organizações de beneficiência de muitos países - qualquer ajuda é bem vinda, não sem desconfiança, pois dos milhões que são dados ao país, nenhum é visto pelo povo, caem todos nas mãos dos governantes corruptos e dos benfeitores que rapinam o que se destinava aos pobres quenianos.
Partimos logo pela A104 em direção a Eldoret no grande e confortável automóvel de J, doado pelos benfeitores da sua organização. "Se não me dão o carro, mato-me", terá ele jurado, declarações sensacionais que li ter feito. Olho com curiosidade para o seu perfil e entendo que vai contente. "As far as we know, Jesus had nothing of his own, but his disciples provided means to his travels and stays, as much as food. Why shouldn't I have not the same, given by my beloved friends?" - tinha ele dito acerca da oferta do carro, em tom de desculpa, mas sem ponta de remorso.
Alí íamos, para o interior queniano, longe das aldeias, onde o homem ainda vive em cubatas e onde há um vazio de tudo. A voz de J. transmitia o desolamento, perguntando-se como é que as pessoas podiam viver privadas de tudo (tudo o que consideramos civilização - a natureza no seu mais puro estado, aquele abandono triste que existe na natureza, que perdura desde sempre, nas florestas, nas terras secas e sem mato, nas montanhas equatoriais onde há uma beleza selvagem e também uma pretensa riqueza para a qual o homem ainda não encontrou proveito: as águas que correm velozes, as chuvas torrenciais, a vegetação de altura insondável, os gritos dos pássaros e de outros animais, que nos apertam o coração pois são gritos de desespero, chamamentos angustiosamente urgentes, isolados, no meio da magnitude do meio, aos quais não sabemos dar resposta).
Cerca de 300 quilómetros de viagem, numa média de 50 km/hora. Depois de um repasto num restaurante elegante, para turistas, mais três horas de viagem por estradas poeirentas de terra batida, em direção ao interior, onde não se vê ninguém, onde só com sorte se descortinarão algumas casas de barro lamacento seguro por tábuas e com telhado de zinco. Aqui e ali, algumas cubatas.
A equipa já lá estava e fazia curativos às pessoas, que não eram aceites nos hospitais (ainda geridos pela Igreja Anglicana). Somente quando estivessem lavados e sem parasitas, poderiam ser vistos pelos médicos e enfermeiras. Crianças rastejavam pelo solo arenoso de cor escura, por não poderam estar em pé, devido às feridas e parasitas que tinham nos pés. Jovens tinham abandonado a escola porque não os deixavam entrar por estarem sujos e porque podiam deixar passar os parasitas para os colegas. Homens e mulheres também estavam "aprisionados, sem correntes nem algemas", como dizia J., pelo inchaço dos pés, pelas mãos inutilizadas pelas bolhas e pus. "They have no life", dizia. Muitos, atormentado há dezenas e dezenas de anos, esqueciam-se até de há quantos anos viviam naquela situação. E as próprias famílias estavam convencidas de que tinham enlouquecido.
Fim da 1ª parte
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