Viagem tumultuosa - pequena história

Viagem tumultuosa 

Pequena história


Talvez uma hora bastasse para terminar a viagem e chegar a casa. Estava a passar a última ponte sobre o rio, que corria sombrio. Olhou para o céu e percebeu que ia ter um resto de viagem sob chuva. Deu conta que se tinha tornado tarde, e a escuridão da noite iria apanhá-la a meio do trajeto.
Estava muito frio e tinha mantido o casacão sobre as calças e casaco que levava vestidas. Calçara as luvas, e assim conseguia manter-se razoavelmente quente.
Depois da ponte a estrada descia bastante, até quase ao nível do rio, e contornava a montanha, com todas as suas curvas, ainda largas. Ela conhecia bem a estrada e sabia que, quando a estrada atingisse o seu nível mais baixo, veria à esquerda uma antiga fonte de pedra e que a curva seguinte marcava o início da subida, uma subida constante, de curvas apertadas, sinalizadas com zês a cada três curvas. Seria assim por mais de 60 kilómetros. 
Raramente se cruzaria com qualquer viatura, não veria ninguém e não passaria por nenhuma povoação.
A chuva começou a cair, pesada, fazendo dobrar os ramos das árvores frondosas, já agitadas por fortes ventos. Ia ser uma viagem difícil, com pouca visibilidade, vidros do carro embaciados. Ao menos que os limpa pára-brisas não avariasse, como já lhe tinha acontecido, pensou. Reconhecia que estava um pouco preocupada, arrependeu-se de ter iniciado a viagem com aquelas previsões de temporal e sentiu vergonha por se ter metido naquela situação.
Foi quando viu as luzes do tabelier a piscarem que ficou seriamente precupada. Reunindo toda a sua coragem, pensou que conseguiria continuar se não forçasse o carro, mas sabia que a subida que ia fazer iria forçá-lo demais. Começou a olhar com muita atenção, tentando vislumbrar alguma luz em alguma casa à beira da estrada. Havia uma única, que se lembrasse, mas não sabia bem onde ficava. Era de pedra negra, como todas naquela região. Tinha rés-do-chão e primeiro andar. Em baixo havia um estabelecimento, mas não tinha ideia de que tipo. Mas vira lá homens, e onde há homens, pensou, há ajuda.
Foi naquele estado de espírito, assustado mas com esperança, que continuou a viagem até ver a casa, iluminada com uma ténua luz amarelada. Tinha só uma portada aberta. À frente estava uma velha carrinha.

Entrou, cheia de coragem. Dois homens conversavam, mas calaram-se ao vê-la. O homem que estava por trás do balcão perguntou-lhe o que desejava e ela contou o que se passava com o carro. O homem torceu o nariz. Era domingo. Não iria conseguir ajuda em sítio nenhum, muito menos àquela hora. Fez-se um enorme silêncio.
Pousou os cotovelos no balcão, esfregou a testa e ficou a pensar. Teria de ficar ali e dormir no carro até à manhã seguinte. Demorou naquele pensamento quando o outro homem disse: "Se a menina quiser posso levá-la para casa da minha tia. Ela tem quartos vagos e pode passar lá a noite. De manhã tudo se resolve." Ela hesitou e sugeriu "Talvez um taxi... " O homem do balcão pegou no telefone e fez algumas chamadas. Ninguém respondeu. E a situação ficou assim, num pesado silêncio.
"A sua tia tem uma pousada?" 
O homem riu-se. "Não, mas a casa é grande e os quartos estão vazios". "Ela já está a dormir, nem vai reparar. Eu deixo-lhe um aviso na cozinha". "Fique descansada", acrescentou.

Foi assim que se viu dentro da carrinha velha, ao lado de um desconhecido que não falava, com a sua pequena mala de fim de semana entre as pernas.
A carrinha avançou pela estrada fora, até que virou num caminho estreito, enlameado e cheio de poças de água. Tudo era um dilúvio por aquela altura. A carrinha torcia-se por entre as poças e a estrada desceu por algum tempo. Viu-se uma casa grande, com as paredes brancas e muitas portadas de madeira. À volta parecia haver um largo pátio que contornava a casa e depois estendiam-se talvez vinhedos, pois não se viam folhas elevadas agitadas pelo vento. O homem encostou a carrinha à porta principal e sairam rapidamente da carrinha refugiando-se no arco que conduzia à entrada. Abriu a porta, acendeu uma pequena luz e conduziu-a a um quarto. Disse-lhe para usar o que precisasse, desejou-lhe boa noite, fechou a porta e ela ouviu-o desligar a luz e a fechar a porta e a carrinha a afastar-se.

Ela era muito assustadiça. Limpou-se no quarto de banho e enfiou-se na cama, convencida de que nem iria adormecer.



Quando acordou levantou-se de um salto e ficou alerta.
Nenhum som vinha da casa.
Abriu cautelosamente as portadas das janelas e o sol cintilou por entre as gotas de chuva que caiam da vegetação. O céu estava azul, claro e límpido, como tantas vezes acontece após uma tempestade.
Vestiu-se e esperou. Mas a manhã já ia alta. Não havia necessidade de esperar. Assim, saiu do quarto e viu um largo corredor com uma decoração sóbria mas rica. Todos os compartimentos tinham as portas abertas e as janelas estavam também abertas. As cortinas brancas enfunavam com a brisa e chegava até ela o cheiro a terra molhada e algum fugaz cheiro a flores.
Atravessou a casa, devagar, tentando encontrar a velha senhora. Mas não havia sinais dela. 
Saiu e ficou parada por uns momentos a contemplar a vinha e as montanhas, ao longe. A luz matinal fazia com que umas estivessem verdejantes e outras ainda na sombra. Era um vale pequeno, ainda assim.
Fumou um cigarro.
Entrou e viu o salão. Mesmo à sua frente estava um sofá e no sofá estava uma velha senhora, que parecia dormir, mas que tinha a camisa de noite vermelha. A mancha vermelha aumentava de tamanho e da mão pingavam gotas de sangue. O horror que sentiu como que lhe fez parar o coração e o seu peito encheu-se de medo, um medo tão grande que parecia ter a consistência de uma pedra.

Ficou parada a olhar, sem saber o que fazer, nem saber o que pensar. O medo aumentou e rodeou-a. Atingiu-a por trás, pelos lados, pela frente, envolveu-a e tirou-lhe toda a capacidade de pensar. O homem, o homem que a tinha levado ali devia lá estar. E ia matá-la também. 
Fugiu, contornou a casa a correr, e subiu o caminho que tinha feito na noite anterior. Depois, achou melhor esconder-se, sair do caminho e ir escondida pelas cepas e troncos de árvores. Tirou os sapatos e continuou a fugir, olhando para todos os lados. 
Ao chegar à estrada, continuou a subir, sem se aproximar do alcatrão. Tinha já as meias rotas e cheias de lama, os pés doridos e feridos. Calma, pensou, vais ter muito que andar, tens de ir com calma.


Ia já a tarde a meio quando viu a aldeia. Tirou as meias, limpou-se e calçou os sapatos. Caminhou na estrada até chegar a um pequeno café e pediu para telefonar, se a ajudavam a encontrar um número de táxi. E quando o táxi chegou, deu ordem para a levar para casa.




Nos dias seguintes sentiu-se muito inquieta. Chegou a ficar de cama, recusando-se a pensar no assunto. Mas sabia que tinha de reagir. Procurou uma oficina que lhe rebocasse o automóvel e esperou que ficasse pronto. Vendeu-o e pediu ajuda financeira à mãe para comprar outro. Mas a lembrança da velha senhora com as mãos a pingar sangue ficou com ela para sempre. Por vezes pensou que tinha sido apenas um sonho. Outras vezes revia todos os pormenores para encontrar erros que tivessem sido cometidos e que a implicassem naquela história. Havia ocasiões em que conseguia esquecer tudo aquilo. 
O tempo passou. Nunca mais usou aquela estrada, embora se lembre de cada curva, da chuva a cair e da agitação caótica dos ramos das árvores durante a tempestade, da escuridão a aumentar e o pesadelo que vivera.

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